Ao terminar a leitura da autobiografia do músico inglês a cena que veio à minha mente foi a da sequência final do filme Cidade das Sombras (Dark City, 1998) onde, atenção ao spoiler, o protagonista percebe que ele mesmo é uma espécie de Deus e seu corpo se eleva aos céus energizado pelo autoconhecimento.
Phil Collins se tornou um deus da música e ele tem consciência disso, mas apesar do status que alcançou, conseguiu de alguma maneira manter um nível de humildade profissional, ao menos o suficiente para tecer sua própria história sem se desviar de episódios física e emocionalmente dolorosos ou ainda que exponham falhas morais que mostram que ainda é puramente humano. O subtítulo do livro é absolutamente justificável pois é mesmo quase um milagre que tenha sobrevivido.
“Vamos ao Brasil pela primeira vez, onde tocamos para 150 mil pessoas. A cada um de nós foi reservado um guarda-costas particular armado, para evitar que sejamos sequestrados.”
É algo ainda raríssimo um baterista que também é vocalista. Com essa formação inusual, Collins assume “a frente” do Genesis após a saída do frontman original Peter Gabriel, iniciando uma fase moderna que resultou em muito sucesso, talvez a fase mais conhecida da banda.
Com passagem pelo teatro durante sua juventude, o inglês ainda apostou na carreira cinematográfica, participando de algumas produções com Jonathan Demme, o diretor de O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991). Nada que o tenha catapultado a astro de Hollywood, mas não se saiu mal, mostrando sua versatilidade em papéis menores.
Collins se aproximou da realeza britânica, sendo até convidado para cerimônias com participação da família real. Firmou amizade com alguns de seus ídolos do mundo da música, como Robert Plant e Eric Clapton. O músico foi citado no livro Psicopata Americano, do escritor Bret Easton Ellis, fato que inclusive é mencionado na autobiografia. O protagonista Patrick Bateman discorre longamente sobre a carreira do Genesis, confessando que prefere a banda com o Collins mas que gosta ainda mais de sua carreira solo: “Os trabalhos solo de Phil Collins mostram-se mais comerciais e por isso mais satisfatórios, porém num sentido mais restrito, em especial No Jacket Required canções como “In the Air Tonight” e “Against All Odds” (embora esta canção tenha sido ofuscada pelo genial filme de onde se origina), “Take me Home”, “Sussudio” (canção maravilhosa, maravilhosa: uma preferência pessoal minha) e sua interpretação de “You Can’t Hurry Love”, que não sou o único a considerar melhor do que o original das Supremes.”
“E daí que o narrador Patrick Bateman, de Bret Easton Ellis, em Psicopata Americano, me veja como o que há de mais brilhante na música daquela década inebriante, espalhafatosa? Ele é um psicopata!”
O caso é que sua carreira solo foi fruto de uma traição conjugal. Sua primeira esposa começou um relacionamento com o decorador enquanto o músico passava meses longe de casa, viajando a trabalho. Seguiram-se várias tentativas de reatar o relacionamento. Collins chegou até a ir morar no Canadá, para onde a esposa havia se mudado, mas foi inútil. Dessa situação caótica e depressiva é que surge o disco Face Value, de 1981, onde o músico expõe os seus sentimentos iniciando uma carreira que terminaria por suplantar o Genesis.
O sentimento do baterista influenciava diretamente seus primeiros trabalhos solos, frutos de decepções amorosas profundas, como uma espécie de expurgo de energias negativas acumuladas. Questões morais quanto aos seus relacionamentos são apresentadas sem medo de julgamentos e apresentam como a vida é instável, como o amor pode ser erodido de diferentes maneiras, voluntária e involuntariamente. Foram três casamentos, todos incluindo filhos, o que gerou uma grande família fragmentada.
“Ando moído com a separação, me sentindo um trapo. Disse para os garotos que ia tirar uma licença para consertar as coisas em Vancouver, e voltei sem conseguir nada.”
Acompanhar a história de Phil é também presenciar o florescimento da própria história do rock inglês, iniciando em uma época em que a música progressiva estava no auge para logo então o mercado fonográfico receber uma explosão de diversidade de estilos na década de 1980, na qual ele embarcou em uma carreira solo que atingiu um público mais amplo continuando a se destacar em uma era altamente competitiva.
Mesmo já gozando de fama e prestígio no mundo da música, Collins se mostrava receoso, até subestimando suas próprias capacidades como baterista, como fica bem claro em sua participação com um desfigurado Led Zeppelin no festival Live Aid. O clima nos bastidores era assustadoramente hostil, incluindo a presença de um outro baterista que o via como concorrente à vaga esperando, quem sabe, um retorno da banda.
Até então não podemos dizer, pelo que foi apresentado pelo próprio, que tivera uma carreira de excessos em sua juventude, ao menos não a um nível Rolling Stones. Foi apenas em uma fase mais madura que turbulências emocionais e o esforço que a atividade de baterista exige apresentaram suas consequências por conta de negligências de várias formas. Collins começou a ter dores no corpo e problemas de audição, o que o levou ao uso e abuso de álcool, analgésicos e outras drogas, o arrastando para o fundo do poço, em um movimento de certa forma até voluntário que quase o matou mais de uma vez. Surgiu uma espécie de desejo de morte, de desprezo pela própria vida, que quase o liquidou.
Ao final do livro, fica parecendo que o músico teve um final feliz definitivo, mas pelo que notícias recentes informam, não foi bem assim, ao menos no tangente à sua vida pessoal, mas estamos nessa pela música.
Phil Collins: Ainda estou vivo uma autobiografia
Editora: BestSeller
Capa comum: 410 páginas